POR QUE HERMES?
Claudio Paixão Anastácio de Paula
Por que Hermes? A resposta mais direta, nas palavras de Walter Frederich Otto, seria: porque ele é, dentre todos os deuses, o mais amistoso para com os homens…
Outro motivo: porque ele é um olímpico que reúne aos maiores atributos de sua origem no reino de Zeus (a liberdade, a grandeza e o fulgor) um aspecto limítrofe: é o deus das conexões!
No entanto, essas respostas aparentemente simples, envolvem uma bela complexidade. Desde eruditos como Otto até escritores populares como Rick Riordan – em as suas (surpreendentemente boas) novelas infanto-juvenis sobre mitologia grega – Hermes é apresentado como a personificação de uma linha-limite que vincula e permite a passagem das mensagens entre as esferas regidas pelos outros deuses.
O deus mensageiro tem uma espécie de despojamento muito particular, ele não se envolve com os outros deuses em suas eternas batalhas pelo poder, para ocupar o lugar ao centro. Até sua própria designação remete a esse status despojado, origem do seu nome é, simplesmente, “pilha de pedras”. Uma pilha de pedras usada para demarcar o caminho aos viajantes.
Segundo López-Pedraza, é justamente por não ter um desejo por ocupar o centro é que Hermes se torna um personagem central. Ele é, por assim dizer, o centro que está em toda parte e que não é limitado por lugar nenhum. Como o Exu dos Yòrubás, faz sua epifania em todas as operações do transcendente. Em todas as operações que se situam entre a ordem e o caos, entre o ordinário e o extraordinário, entre o dentro e o fora, entre o acima e o abaixo, entre o mundo desperto e o mundo dos sonhos, entre a vida e a morte pode ser percebida a sua hospitalidade.
Hermes era (é?) o patrono dos rebanhos, das estradas e do comércio; protetor dos viajantes e inspirador da hospitalidade a eles dedicada; deus do engano, do roubo e da astúcia; padroeiro dos arautos e da diplomacia, da língua e da escrita, das competições atléticas, dos ginásios e da astronomia; e, finalmente, guia das almas que levava os mortos para o submundo.
Um deus, moderno por excelência – cuja presença podia ser sentida nas grandes navegações e, especialmente, na jornada que os portugueses, descendentes imaginários de Luso e Odisseu, empreenderam para dominar e transpor o mar grosso – e que se tornou patrono e precursor da internacionalização. É um deus das comunicações da antiguidade que, em uma era de comunicações instantâneas, se torna mais atual que nunca. Um deus que pode ser invocado como um guia para percorrer as trevas de um submundo habitado pelas sombras da pós-verdade, dos radicalismos, do conservadorismo, do preconceito, da xenofobia…
O poder de trazer luz às trevas que esse filho de Zeus e Maia (a patronesse da busca da verdade na alma dos homens) pode ser um lenitivo em tempos em que a realidade é torcida pelo poder dos meios de comunicação. Seu poder de transformação que transmuta a natureza em cultura pode ser invocado para mudar, pelo poder da linguagem e dos símbolos, o mundo “bruto” da vida não cultivada em um reino humano pleno de sentido.
O deus das transmutações, que de uma tartaruga fez a primeira lira, transformou-se de deus da fertilidade em patrono da ciência. Esse primeiro luthier, por ser mediador entre mundos, entre deuses e homens, se tornou mediador de saberes. Esse caixeiro-viajante, por ser a ponte entre o familiar e o estrangeiro, se tornou o pai da hermenêutica: da interpretação. Esse primeiro diplomata, tornou-se o inspirador dos intérpretes e o protetor de todos aqueles que lutam com as significações.
Embora os heróis invocassem a bela Atena de olhos glaucos antes de cada empreitada heroica, nas jornadas inglórias, árduas e difíceis – onde contar apenas com a coragem e a autoconfiança não era o bastante – era Hermes quem acorria em auxílio dos semideuses. Nessas ocasiões era a astúcia, a malícia e a sorte que o deus da existência cruzada inspirava que os guiava em segurança nas jornadas de ida e de volta…
Em que pese a escolha de Hermes e, especialmente, de suas sandálias como símbolo do grupo, há que se reconhecer que a urgente necessidade de ser exercitada uma perspectiva crítica ao eurocentrismo no campo da Ciência da Informação, exige uma preocupação com a incorporação dos anseios por um protagonismo de pesquisadores do sul global neste campo e que essa preocupação precisa ganhar uma representação simbólica. Desse modo, ao se pretender considerar a influência da imaginação criadora de ficções na compreensão do vasto universo que envolve a informação na sociedade contemporânea, talvez fosse interessante que, alegoricamente, fosse solicitada permissão e prestada oferenda antes de adentar esse terreno. Pedir licença não somente ao doador da marca deste grupo, mas também a uma divindade bem mais próxima de nós.
Ao associar o presente século às divindades antigas e modernas da comunicação – como Exu (Iorubá), Legba (Fon) ou ao próprio Hermes (Grega) – personalizações da comunicação, do movimento, da troca, da circulação, da habilidade, esperteza, da malícia e da ginga (seja representada pela capoeira ou por sandálias aladas), mas também da astúcia e da trapaça – é preciso que se considere a complexidade dessas personagens. Já que, ainda no campo da alegoria, elas são referências, numa leitura simbólica do Século XXI, não só à velocidade da mudança engendrada pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, mas também à desinformação e às fake news, entendidas como a divulgação de informações falsas ou inexatas com o intuito de confundir e manipular, talvez seja melhor estar em relação com com a essência dessas forças simbólicas do que exercitar o esforço inútil de lutar contra elas.
Talvez assim, mesmo embebidos pela lógica do trikster presente nas belas, mas empoeiradas, mitologias do colonizador, possamos voltar os olhos para a força ainda viva da herança africana dos escravizados que corre em nossas veias. Quem sabe, a partir desse gesto, possamos compreender melhor a força que pode fazer contra, mas que também pode fazer a favor; a força que faz o que faz, porque é o que é.
É com tudo isso em mente que nós, “como os que invocam espíritos”, a invocamos.
Se nós, no GEDII, buscamos compreender e operar com os desafios que indivíduos e coletividades enfrentam na era das mensagens, das virtualidades e das comunicações instantâneas, é ao deus de sandálias aladas que devemos prestar tributo:
Cantamos Hermes, filho de Zeus, mensageiro dos imortais, a quem Maia gerou:
Salve Hermes, que concede alegrias! Condutor! Dadivoso!
Tu, que nada concede, concedes-nos a honra não minúscula
de ostentar tuas sandálias em nosso brasão.
Fazemos-te nossas saudações ó zelador dos bois e guardião dos caminhos.
Sê-nos hospitaleiro.
Conduz as almas destes que terão lembranças de ti em outros cantos…
Se nós, nesse grupo, desejamos ampliar o desenho das pesquisas em Ciência da Informação a partir de uma prática comprometida com a justiça social e os direitos humanos, com a alfabetização científica transversal (precoce e, simultaneamente, inclusiva), com o resgate das nossas heranças epistemológicas, interculturais, interseccionais e decoloniais (reconhecendo a importância da nossa essência Afrodiaspórica e Indígena), é ao portador do ogó, poderoso porrete, que castiga aqueles que buscam burlar sua vigilância e percorrer caminhos sem a sua mediação, que devemos prestar tributo:
Cantamos a Exu, que visitou Oxalá todos os dias, e viu o velho fabricar os seres humanos.
Saldamos Exu, porque muitos e muitas foram visitar Oxalá, mas ficaram pouco e nada aprenderam.
Salve Exu, porque se muitos vinham, traziam presentes e partiam, Exu permanecia, aprendia e ajudava Oxalá.
Ave Exu, que não trouxe nada mas, com a cabeça descoberta, respeitou o tabu de Olodumaré.
Seja bondoso conosco mensageiro e senhor das encruzilhadas.
Reine em nossa cabeça, ó mais novo dos orixás que, por sua diligência, passou a ser o mais velho.
Laroyê Exu !!
Belo Horizonte, outono de 2017*.
*Atualizada no outono de 2023
Referências: BRANCO, A. M. V. A mitologia grega, uma concepção genial produzida pela humanidade: os condicionalismos religiosos e históricos na civilização helénica. Revista Millenium, n.31, maio de 2005. DE ROSA, Edvanda Bonavina et al.(tradução, notas e estudo) RIBEIRO Jr., Wilson Alves (edição e organização) Hinos homéricos. São Paulo: Editora UNESP, 2010. KERÉNYI, K. Arquétipos da religião grega. Petrópolis: Vozes, 2015. LÓPEZ-PEDRAZA, Rafael. Hermes e seus filhos. São Paulo: Paulus, 1999. MACEDO, R. S. Hermes Re-conhecido. Etnopesquisa-crítica, currículo e formação docente. Revista Entreideias: Educação, Cultura e Sociedade, n.2, 1998. PRANDI, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. OTTO, Walter F. The homeric gods, trad. Thames and Hudson, Londres, s.d. RIKER, J. H. Human Excellence and an Ecological Conception of the psyche. Albany, N.Y.: State University of New York Press. 1991.