POR QUE ESCOLHEMOS SER UM GABINETE E NÃO CRIAR UM LABORATÓRIO DE ESTUDOS DO IMAGINÁRIO?
Claudio Paixão Anastácio de Paula
A resposta não é simples…
Gabinetes são e não são laboratórios. São lugares de voos do espírito, como os voos que os melhores laboratórios do mundo proporcionam. Mas, diferentemente dos laboratórios, que facilmente nos seduzem pelo poder – embevecendo-nos com sua inteligência asséptica, seus protocolos e sua objetividade –, são lugares carregados de imaginação e fascinação humanística. Nesse sentido, os gabinetes não acenam apenas para as altitudes espirituais, aos Himalaias, ao Tibete e seus Lamas e Tülkus tão ascéticos e espiritualizados. Os gabinetes apontam para a confusão, a fertilidade e para as profundezas do mar, dos pântanos, das florestas e dos acidentes geográficos; para as poças obscuras onde rastejam inesperadas criaturas, para tumbas ocultas em desertos escondidos, ruínas perdidas de civilizações de outrora…
Poder-se-ia dizer que enquanto os laboratórios apontam para o espírito e sua retidão unívoca, os gabinetes apontam para a alma… Para um espaço plural, polissêmico, povoado por pessoazinhas, que é a gênese dos chistes, dos lapsos de linguagem e das outras parapraxias, o originador das contorções e paralisias inexplicáveis, das possessões assustadoras, dos rituais perturbadores; e, por que não, das tumescências súbitas, vexatórias e, por isso mesmo, reveladoras. A alma é o gabinete onde são gestados os monstros, os heróis, os sonhos, os mitos e as lendas. E os gabinetes são os lugares aonde a alma é ouvida: quer seja reclinada num divã, quer seja frente a frente sob o olhar afetivo que garante ao falante que nada o que ele possa dizer é terrível o bastante para assustar seu ouvinte…
Gabinete é uma designação que pode ser atribuída a uma pequena sala isolada do conjunto de uma habitação. Mas esse espaço só terá esse significado se for destinado, antes de qualquer coisa, ao trabalho. Trabalho: construção de uma obra, opus, como na alquimia, essa ancestral imaginativamente psicológica da química. Uma prática que reunia, aos primeiros estudos de química, elementos da metalurgia, da matemática, da filosofia e da antropologia e se baseava, eminentemente, no trabalho laborioso. Um trabalho ao mesmo tempo interno e externo onde as operações físico-químicas e as misturas buscavam não somente transmutações na matéria, mas no espírito. Lugares de “fazer alma”.
Gabinetes, já foi dito, são lugares destinados com exclusividade ao trabalho, mas não a um trabalho ordinário. São locais destinados a grandes empreitadas, ao trabalho dos superiores. Só assim se justificaria serem assim chamados os locais de trabalho dos primeiros-ministros: GABINETES! Lugares onde grandes temas são debatidos, futuros e destinos são traçados, mas onde por debaixo dos assentos está perenemente escrita a advertência de que a fortuna muda sempre de direção: Hecubam Reginam.
Gabinetes foram ancestrais dos museus, das coleções científicas e dos laboratórios de hoje. Entre os séculos XVI e XVII às suas animalia, vegetalia e mineralia se juntavam outras coleções: a mirabilia, a scientifica e a artificialia… Lugares onde se reuniam e se tentavam ordenar o científico, o natural, o exótico e os objetos e os materiais criados ou modificados pelo engenho humano. Neles, podiam-se misturar o óculo de alcance; a joia mesopotâmica; o diamante africano; a essência de curare embebida em pontas de flechas; a flor gigante que mesmo seca ainda rescende a carniça; e, ó maravilha das maravilhas, o corpo embalsamado de um filhote de sereia…
Chamaram também de gabinetes aos recintos pequenos, misto de bibliotecas e arquivos dedicados ao estudo de certos doutos e onde velhos livros e misteriosos documentos se acumulavam e trocavam segredos entre si. Sim… Pois todos sabem que a noite, longe dos olhos dos leitores, as histórias teimam em se esgueirar, se misturar e gestar novos projetos, novos desejos e, porque não? Novos pesadelos para tomar de assalto seus leitores desavisados.
Camarins também foram chamados de gabinetes, locais onde atores, embusteiros, farsantes, e, principalmente, clowns se paramentavam para exercerem seu ofício… Clowns ou palhaços não são, em sua origem, necessariamente um personagem. São antes um estado. O estado de clown: um modo de funcionamento que denuncia o ridículo da sociedade, a arrogância dos religiosos, a presunção dos poderosos, a ganância dos ricos e a empáfia dos intelectuais. O verdadeiro palhaço cuja alma emerge do gabinete é uma grande hipérbole que, em seu exagero, produz o riso nervoso que deleita a inteligência, angustia o sábio, faz o curioso pensar e produz gargalhadas nos ignorantes. A cara pintada do verdadeiro palhaço, do Bobo Plin de Plínio Marcos, é, como a máscara da Medusa no teatro grego, uma máscara cujos olhos vazados fazem revelar ao invés de esconder e, por isso, petrificar.
Finalmente, o gabinete é o compartimento reservado em uma hospedaria ou casa de pasto onde toda a sorte de pessoas diferentes se reúne como iguais. Um lugar onde, apartadas da confusão e do entra-e-sai, podem comer, beber e alimentar corpo e o espírito. Um lugar onde elas se encontram e se protegem das intempéries e da escuridão trocando histórias assombrosas e confidências que não podem ser feitas aos que se conhece – e que, por isso mesmo, só se faz a estranhos. Um espaço feito de histórias trocadas que acabam alimentando a alma. Um lugar para falar e, entre uma dose e outra, esperar o momento em que as tempestades passem, as carruagens cheguem ou o degelo se dê, para seguir a vida prenhe de novas histórias…
Gabinetes são, sintetizando, lugares de polissemia: “pedaços” construídos de pedaços de tudo e de nada. Pareceu-nos, portanto, bastante natural, que um lugar destinado a estudar o imaginário e a informação nesses tempos de pós-verdade, fosse chamado de GABINETE…